sexta-feira, 17 de julho de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Do lado de lá do Muro

A Alemanha era duas. Dizem que isso foi há pouco tempo, mais exatamente há vinte anos, mas como esse mesmo espaço de tempo corresponde a 80% do meu tempo de vida, não consigo dizer com tanta facilidade “Sim, foi há pouquíssimo tempo!”. Mas havia, sim, duas Alemanhas, uma Oriental, socialista, e outra Ocidental, capitalista, assim como havia duas Berlins. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética dividiram o país entre si, gerando, por assim dizer, essas duas Alemanhas, sistema – ou sistemas? – que durou 40 anos, de 1949 a 1989, quando o Muro de Berlim caiu – o que não acompanhei pela TV pelas razões óbvias que a idade de cinco anos apresenta –, sendo que só um ano depois é que a reunificação alemã foi efetivada.

A questão é que nada nesta vida passa a ser ou deixa de ser porque foi dito “Agora é de outro jeito!”. Aquilo que chega a constituir nossa existência é (des)trançado ao longo do tempo, muitas vezes ao longo de muito tempo, o que talvez explique o pensamento de Lispector ao dizer que o tempo se mede em anos, não em dias. O fato é que um dia o Muro caiu e a Alemanha Oriental foi anexada à Ocidental, mas o que se vive politicamente por quarenta longos anos não muda em vinte, como minha vida mudou nos mesmos vinte anos – até porque, se ela não mudasse, havia algo muito errado! No fim de semana passado, deixei o oeste alemão e fui a Leipzig, visitar o Fábio, amigo que conheci na Casa de Cultura Alemã há uns poucos anos, e conhecer as tão comentadas diferenças entre Leste e Oeste na Alemanha. Paola, figurinha repetida nestas crônicas, e André, biólogo que já mora aqui há um tempo, mas dono de trejeitos cearenses como se tivesse chegado ontem, também foram.


Leipzig, Dresden e Wittenberg. Sexta, sábado e domingo. Leipzig tem praia – de lago – e prédios abandonados que lembram alguns do centro de Fortaleza e outros muito bonitos construídos pelo governo socialista, Dresden é a cidade mais linda da Alemanha e Wittenberg vive de Lutero como o Crato vive de Padre Cícero. Foram estas as generalizações – portanto, duvidosas, mas em alguma instância corretas – a que chegamos.


Ao receber o convite para ir à praia, não hesitei, apesar da falta de biquíni. Confesso que tive até um pensamento preconceituoso do tipo “Mas as praias daqui nem são essas coisas todas mesmo! Vou lá só ver pra poder dizer pros meus alunos, escrever uma crônica e pronto!”. Alertada pelo Fábio de que a cultura de nudismo no leste alemão ainda é bem forte, ou seja, alertada para o fato de que poderia ver gente pelada, fui, não sem pedir a Deus para não ver nada de muito esdrúxulo. No caminho, vi mais uma vez a já comentada mudança de comportamento dos alemães quando chega o verão. Tenho sempre a impressão de que eles têm uma satisfação enorme ao usarem havaianas e carregarem uma bolsinha com acessórios de praia, algo como a nossa ao vestirmos uma jaqueta de inverno e usarmos cachecol, sensações explicadas pelo fato de ter pouco ou nunca ter, no meu caso, determinada coisa. Sei que lá não vi, graças a Deus, nada esdrúxulo. Com exceção de umas duas ou três mulheres que exibiam ao Sol e a quem quisesse ver suas mamas, o “rego” de um cara – desculpem, não acho expressão mais apropriada! – que se trocou na praia mesmo e algumas crianças nuas, tudo era como é no Brasil, com direito à barraca e música. Voltei atrás no meu preconceito e desejei muito ter um biquíni por baixo da roupa que usava – sim, porque, se o biquíni estivesse na bolsa, daria na mesma; não tenho a menor intenção de exibir ao Sol e ao mundo minhas mamas! Saindo da praia, encontramos Paola e André e conhecemos os principais monumentos e locais da cidade, lugares como a Ópera, a igreja cujo pátio deu lugar às manifestações a favor da reunificação alemã e o Monumento da Batalha dos Povos, cuja propaganda comparava o monumento com a Torre Eiffel e a Estátua da Liberdade, o que foi suficiente para fazer Paola parar de elogiá-lo e começar reclamar da “pretensão” de compará-lo à Torre e à estátua de Nova Iorque.



Em Dresden, foi feito o que se entende por turismo de chinês: fotos e fotos num espaço de tempo muito curto sem nem saber muito bem o que se fotografa. Paola, munida do conteúdo da Wikipédia sobre a cidade, bem que tentou ter e dar um panorama geral da cidade, mas eu, André e Fábio preferimos comprar um mapa da cidade por oitenta centavos que em termos de orientação correspondia ao preço, mas que dava umas informações até interessantes sobre aquilo que se deve priorizar numa visita de um dia a Dresden. A Frauenkirche desta cidade, que em português corresponde à Igreja de Nossa Senhora, é uma das poucas coisas de que tive a consciência de estar conhecendo. Achei de uma beleza imponente e, enquanto igreja luterana, muito interessante pelo fato de ter esse nome, espanto que se explica pela minha ignorância quanto ao credo luterano. Sei que após vermos essa igreja, consegui fazer com que meus companheiros de viagem tivessem também vontade de ir a Wittenberg, para onde estava determinada a ir ainda que só. Não é sempre que se tem a chance de visitar lugares que, apesar do tempo e da distância, foram palcos de muita coisa que ainda diz respeito a sua vida e, exatamente por isso, na condição de cristã, ainda que não convencional, saí do Brasil disposta a ver onde Lutero havia vivido e pregado as 95 teses que originaram a Reforma.

Sei que aconteceu de ir a Wittenberg num domingo e, não por coincidência, assistir aos quinze minutos finais do culto dominical na catedral onde o Movimento Protestante foi iniciado. Acho que seja digno de mencionar que era um culto ministrado por uma mulher, resultado de reformas bem posteriores às de Lutero e que também dizem muito respeito a minha vida. Após o culto, vimos um pouco da arquitetura da igreja e andamos pela cidade, e foi exatamente esse passeio que nos fez ver que, sim, Wittenberg vive de Lutero como o Crato vive de Padre Cícero. Tive a impressão de que, além da igreja e da casa de Martinho Lutero, não há muito o que se ver por lá. O silêncio das ruas, muitas ocupadas só por nós quatro, e as lojas fechadas, todas bem pequenas, tornam bem claro que se trata, sim, de uma cidade do interior. Imaginando a Wittenberg do século XVI, lembrei das preferências do Deus em que creio por aquilo que é pequeno e, digamos, insignificante. Penso que, em Seus hábitos divinos de escolher o que não é para transformar no que é, escolheu uma cidade mais que adequada.

Na segunda-feira seguinte, voltei para o lado de cá da Alemanha, com noções do que havia do lado de lá do Muro espalhadas em fotos, crônicas, experiências e pouco mais de fé.

Susy Almeida


Colônia, 17.07.09