quinta-feira, 28 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - História de uma sexta e considerações


Perdi todos os bons shows que aconteceram em Fortaleza desde setembro de 2008 até agora. E porque quase sempre lamentei que os nomes contemporâneos da nossa música quase nunca iam pros lados do Nordeste, preferi achar cômico a achar trágico que cantores como Calcanhotto, Herbert Viana, Paulo Miklos, Mallu Magalhães e Marcelo Camelo escolheram ou foram escolhidos para estar na minha cidade exatamente no período em que não estou lá. Até uma das cantoras de meus já quase distantes 13 anos, Alanis Morissette, pôs os pezinhos no Siará Hall. E eu não vi nada! Embora tenha conseguido “ouvir” 'Don't be surprised if I love you for all that you are, I couldn't help it, it's all your faults' ao ver O beijo, de Rodin, e 'Por que meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro?' ao ver os quadros que Frida Kahlo produziu pelo relacionamento que tinha com Diego Rivera – essas músicas não “ouviria” dessa maneira em Fortaleza –, lamentei não poder ouvi-las ao vivo. Mas minha mãe sempre me disse que não dá pra ter tudo, então assim a gente olha com certa facilidade para aquilo que tem nas mãos e de repente já nem se importa tanto com o que não tem. Até porque acredito ainda poder ver esses cantores de que falei em Fortaleza, mas as obras de Kahlo e Rodin não estão no Dragão do Mar com tanta facilidade assim.

Há umas semanas, porém, houve um show que não veria nunca na minha cidade rente ao Sol. Pelo menos não como aqui. Vanessa da Mata foi escolhida – porque foi convidada – para estar em Colônia quando eu estou em Colônia. E isso, é claro, não perdi. Eu e Ticiana, estudante de intercâmbio de Engenharia que tem se disposto a rir de minhas neuroses reais e compartilhado as suas para que eu também ria, foi comigo ao Café Glória no dia 24.04.09.


Chegamos cedo e fomos as terceira e quarta da fila, porque queríamos ver bem de perto. Nem precisava. Os alemães foram bem pontuais, e a casa de show, anteriormente uma sala de cinema e, portanto, pequena como boa parte dessas salas são aqui, só lotou uns 20 minutos antes do horário marcado. Mas ficamos bem perto. Perto o suficiente para ler a lista das músicas a serem cantadas naquela noite pregada no chão ao lado do microfone. Perto o suficiente para pedir ao guitarrista a palheta quando ele ainda nem tinha começado a tocar. Perto o suficiente para ver a mão de Vanessa segurar a cortina pouco antes de abri-la e entrar no palco muito senhora dele e de si. Perto o suficiente para ver um Cristo Redentor pendurado logo abaixo de uma cicatriz à altura da tireóide. Perto o suficiente para tocar na mão dela, que todo mundo só quer tocar porque é a dela. Sim, porque Ticiana nunca nem pegou na minha mão, apesar de isso não importar para a crônica!


Sei que Vanessa parece mesmo não levar problemas para o palco, como uma vez ouvi numa entrevista. Me pareceu consciente e dona do que canta, dança e expressa. E acredito que, se não conseguiu ter coro em todas as músicas que cantou, foi por uma razão óbvia: boa parte do público não falava português. Coisa que, claro, não importou em Boa Sorte e Ai, ai, ai.... Mas os brasileiros que estavam lá fizeram bem a parte que lhes cabia. Cantei tudo que sabia e dancei tudo que não sabia. Tem coisas que, afinal, não importam, e a ignorância dos outros sempre faz com que algumas coisas sejam feitas sem muita dificuldade, assim não é nada difícil dançar xote ou sambar quando ao redor há alemães que entendem daquilo menos que você. Além disso, a noite havia começado sem muita atenção a coisas pequenas: Vanessa saudou o público com um Guten Abend! ensaiado e de vez em quando falava com a gente com umas frases que ela lia em alemão nasalizando até não mais poder. Por que eu deveria, então, me importar com o que não importa? Pois dancei!


História de uma gata, na verdade composta pelo Chico, foi um dos pontos altos pra mim. A letra me agrada muito por me dizer o óbvio que está além do já dito e a batida um tanto rock ainda mais viva numa apresentação ao vivo deixa o trecho 'Pela rua virando lata, eu sou mais eu, mais gata, numa louca serenata, que de noite sai cantando assim, nós, gatos, já nascemos pobres, porém, já nascemos livres' com um certo gosto de hino de liberdade. Boa Sorte, ápice do show para os estrangeiros todos – sim, porque aquelas duas horas foram brasileiras – cantei e dancei por uma amiga muito querida que dispensou um daqueles homenzinhos que não amam bem com essa música quando ela ainda começava a ser sucesso. Pensei nela com muita intensidade nessa hora e até ri por lembrar suas loucuras e amizade. Ai, ai, ai... foi uma das últimas, tocadas após Vanessa ir para detrás das cortinas ouvir os gritos de bis e voltar como se nada estivesse programado. Vi na lista no chão ao lado do microfone. Mas gritei por este bis como quem acredita que seu grito é aquele que faz o cantor voltar.

Já disse que achei Vanessa muito natural no palco, apesar do pouco – ou muito – de encenação que acredito ser necessário para se cantar e envolver gente com o que se canta. Num dado instante houve espaço para aquela que talvez seja a mais natural das coisas. Quando Vanessa deveria ter iniciado Amado, a voz não saiu. Os olhos já cheios de lágrima trouxeram gritos como “Você merece!” e “Maravilhosa!”. Não conseguindo começar a música após a introdução ser feita pela segunda vez, foi para detrás do palco para voltar segundos depois. E, percebia-se, não era sem contenção que ela cantava. Não acredito que haja tanta comoção em todo show devido a essa música. Creio que o motivo na hora era a satisfação e – por que não dizer? – privilégio de mostrar num lugar que não é o seu sua música, sua arte, sua vida e, através disso, que “nem toda brasileira é bunda”. Após terminar a música, um alemão estendeu um daqueles lencinhos tão alemães quanto a cerveja Kölsch é de Colônia. Ela o pegou e enxugou o canto dos olhos.

Foi um dos melhores shows a que fui, não sendo o melhor pela ausência daquele para quem canto Ainda Bem. Muito dançante, muito brasileiro, muito poético e muito vivo. E, no final, o guitarrista me entregou a palheta na mão.

Susy Almeida

Colônia, 19.05.09

terça-feira, 26 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Mundo além

Sempre achei esta Wohnheim onde moro um mundo. Boa parte do meu mundo aqui e um mundo à parte, um mundo dentro de um outro – ou outros? – maior. Nas últimas semanas, então, tem me parecido um tanto contraditório que o mundo, entendendo a palavra no seu sentido de planeta, possa ser tão caótico quando este mini-mundo consegue se dar de forma respeitosa, quando não amigável. Afinal o mundo enquanto planeta é feito de gente de mini-mundos como esse.

Pode ser que o tempo que me resta aqui não me permita aprofundar tanto as amizades que tenho feito e pode ser que nunca mais volte a falar com vários dos que têm composto parte de minha experiência, mas vou levar boas coisas do convívio com essa gente.

Há mais ou menos uma semana, descobri um problema que me fez pensar no quanto seria bom ter minha família por perto e me julguei só pela ausência dela e do meu amor. Me espantou um pouco ver como meus colegas de Wohnheim reagiram ao saber do problema. Ouvi frases como “Você não está só. Se for preciso, a gente te ajuda.” ou “Pode contar comigo se precisar de ajuda. Inclusive se estiver triste, pode bater na minha porta.”. Não que não os considerasse capazes de reações como essas, só não achava que minha relação com eles já permitisse tais disposições de ajuda e afeto. Ainda ontem ouvi um daqueles “Você está melhor?” que vêm com um tom de sinceridade na fala e que retiram um sorriso de quem tem a felicidade de escutá-lo. Não senti que tivesse novos “amigos de infância”, mas senti que Deus ouviu minha oração quando, por várias vezes antes de vir para cá, pedi que encontrasse pessoas de bem nesta experiência.

Vários colegas brasileiros, alemães e de outros países falam de vivências chatas e até problemáticas em outras Wohnheime. Falam sempre da atmosfera “cada um que cuide de si” que parece reinar. Acho sempre muito interessante quando, nos feriados ou aos domingos, alguém se dá conta de não ter tudo que precisa pra cozinhar e recebe de um outro aquilo de que necessita. Coisa que se paga com um favor qualquer ou mesmo com a substituição daquilo que foi usado.

Hoje vi mais um desses atos de acolhimento e, por que não dizer?, amizade. Por volta de meia-noite ouvi risos, falas e barulhos no corredor como o de quem carrega algo muito pesado. Por demorar demais e por ser já tarde, decidi ver se estava tudo em ordem. Carregava-se, sim, por assim dizer, algo muito pesado: um homem de mais ou menos um metro e setenta, muito bêbado, estava sendo ajudado por uma alemã de um metro e meio a chegar em casa. Os dois moram aqui. Ela o encontrou na escada tentando subir e viu que sozinho ele não conseguiria, pelo menos não tão cedo ou facilmente. Com algum esforço e depois de ouvir inúmeras vezes a frase de todos os bêbados do mundo, “Eu amo vocês!”, conseguimos colocá-lo para dentro do quarto. Mas só para dentro do quarto, porque, como qualquer bêbado que se preze, o moço tratou de cair no chão e lá ficar. A alemã aflitíssima, com medo de o amigo dormir, porventura vomitar e não conseguir expelir o vômito. Eu, mais insensível, disse que já vira gente em situações piores dormir a noite toda e não se sufocar com vômito nenhum. Decidimos chamar um dos meninos para ajudar a colocá-lo na cama, porque virar as costas e deixar alguém no chão não é coisa que se faça, pelo menos não tão freqüentemente e quando não há abuso da boa vontade alheia. Além disso, a alemã é muito amiga dele, e ele já é um bom colega meu. Um polonês veio. De novo com algum esforço colocamos o rapaz na cama. Fechamos a porta e saímos. Já no meio do corredor, ouvimos que ele se levantara e abrira a porta. Queria ir ao banheiro para fazer a mais bêbada de todas as ações: vomitar. Enquanto isso, um árabe apareceu e juntou-se ao polonês na árdua tarefa de deitar o moço. Tiraram-lhe os sapatos e o deitaram com um cuidado até fraternal, eu diria. Instantes depois, vi quando o árabe, que deixara a chave pelo lado de fora da porta, viera conferir se estava tudo bem. Com um sorriso ele disse: “Já está roncando!”. Ao ver alguém bêbado assim, tenho sempre sentimentos que oscilam entre a misericórdia e o asco. Acredito que aquilo que alguém mais tem é a consciência de si. Fazer algo por perdê-la é algo que não compreendo. Exatamente por isto, não pude deixar de admirar a atitude da alemã de um metro e meio e dos meninos. Sinto de novo que Deus ouviu minha oração e pôs pessoas de bem ao meu redor.

Óbvio que aqui há desentendimentos e discussões, mas eles se resolvem com um mínimo de respeito. Discute-se, xinga-se e ignora-se mutuamente sem delongas e atitudes pífias. Uma ponta de respeito, porém, sempre sobra. Fico pensando, então, sem querer soar ingênua e boba, porque é que se consegue algo tão grandioso numa escala pequena e não numa maior, quando normalmente esta é a ordem dos grandes feitos. Me parece mesmo que esse corredor povoado por orientais e ocidentais, cristãos, ateus e muçulmanos, fanáticos por futebol e fanáticos por sinuca, apreciadores de Bach e apreciadores de Hip-Hop, gente de toda cor e jeito, é mesmo um mundo à parte deste nosso mundo, que às vezes chego a ter como um tanto além, não aquém.

Susy Almeida

Colônia, 04.05.09

Crônicas do Velho Mundo novo - Falando da vida


"(...) Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim, chegar e partir
São só dois lados
Da mesma viagem (…)
A plataforma dessa estação é a vida (...)"
Encontros e Despedidas, Maria Rita

É difícil falar da vida porque é difícil falar daquilo que não se conhece por inteiro ou pelo menos muito bem, já que acredito não haver quem a conheça por completo. Alguns tornam a vida um tanto difícil – a dos outros e a própria – ao fazer de umas poucas vivências limitadas a um dado tempo, espaço e indivíduo medida de toda a amplitude dela. Sei que incorro neste risco ao querer falar sobre a vida, mas como ser vivente, em seus sentidos todos, acredito ter o direito dado por ela própria, já que ela própria se apresenta sempre tão arriscada.

Aqui observo muito. Tento tirar da vida o máximo que ela pode e quer me dar neste tempo. “Os dias em que eu me vejo só são dias em que eu me encontro mais”, como alguém canta. E assim acredito deixar entrar no plano da consciência o que até então era só coisa ouvida. Creio que a gente só entende algo quando aquilo que se diz entender faz parte da consciência.

Sei que a vida parece ser mesmo um vai-e-vem. Um vai-e-vem que só tem a chance de ser vivido quando se tem a chance de viver. Parece que ela às vezes dorme e, como que despertada abruptamente, se impõe com pressa e ânsia e força. E nessa pressa tanto nos exulta como solapa a alma. Parece que, ironicamente, os instantes de solapos e quedas evitam outros, enquanto os de êxtase trazem outros. Vida produz vida, e há erros que, pela dor que causam, nos conduzem a um caminho pacificado e de bem.

O caráter de transitoriedade da experiência aqui e de outras anteriores a esta de valor eterno para minha alma tem me dito bem que a vida toda é assim, algo que vai. Me vi lançada contra essa efemeridade quando me vi amando muito o homem que amo e com uma viagem marcada para um país distante dele. Como escrevi num poema pra ele, “cada minuto foi devidamente minuto”. E, embora tenhamos repetido os minutos o máximo que pudemos, numa hora todos eles se foram. Aqui, ainda em minhas primeiras horas em Colônia, João, bolsista anterior a mim, me disse: “O tempo aqui passa muito rápido. Não deixe nada pra fazer depois porque não dá tempo. E também não crie a ilusão de que isto é seu. Viva sabendo que vai acabar.”. Escuto isso na minha mente quase todos os dias, mas muito mais como metáfora da vida do que como conselho de alguém que já passou por uma experiência que estou vivendo.

Há mais ou menos duas semanas, a alemã que em setembro passado encheu a Wohnheim de vida pelo amor que não escondeu viver com seu namorado francês foi embora. Após uns três anos morando aqui – período máximo permitido pela organização estudantil – e por querer fazer um estágio na Suíça, ela passou o quarto a uma menina da Eslováquia. Uns cinco colegas a acompanharam até o carro: Kai, Maged, Lydia, Aysche e eu. Acredito que a única despedida sem aquele mal-estar próprio das despedidas foi a minha. Não que não me sentisse bem com ela, mas despedir-se de colegas não dói em nada. Difícil mesmo é dizer tchau para quem a gente sabe que vai levando na alma ou na alma e no corpo. Quando o carro dobrou a esquina, uma das meninas falou: “O ruim de se morar numa Wohnheim é porque você convive tanto tempo com as pessoas e depois elas vão embora.”. Pequena metáfora da vida?

Em meio a estes pensamentos todos, soube da morte do pai de uma amiga a quem quero muito bem. Uma semana depois, soube do nascimento da filha de uma conhecida. “Tem gente a sorrir e a chorar”, porque “chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”... As coisas me pareceram, então, como que uma brincadeira de roda, em que uns cedem lugar aos outros porque precisam ir a outras rodas ou porque já não é mais tempo de brincar. Parece caber a quem vem entender de ritmo, compasso e tom para poder brincar melhor. Isso enquanto se dança, enquanto se brinca, porque a vida parece ser mesmo um vai-e-vem que só tem a chance de ser vivido quando se tem a chance de viver.

Susy Almeida

Colônia, 18/19.04.09

Crônicas do Velho Mundo novo - Sobre o começo da primavera


"Abre essa janela, primavera quer entrar"
Casa Pré-Fabricada, Los Hermanos

Sempre se diz que os brasileiros têm diversas facetas e uma multiplicidade cultural bem extensa. O caldeamento racial que fez com que sejamos quem somos em termos de povo fez com que características contraditórias sejam tidas por tipicamente brasileiras. Tanto é brasileiro o sujeito que é malandro e malaca e que exatamente por isso faz tudo de modo displicente ou duvidoso como o sujeito que faz tudo da maneira mais perseverante e digna possível porque é brasileiro e não desiste nunca.

Tenho visto, porém, que não somos, claro, os únicos assim tão versáteis. Os alemães são donos de uma versatilidade no mínimo interessante. Não falo aqui de muitos deles não corresponderem aos tão propalados clichês, mas de eles, de um modo geral, se tornarem um tanto diferentes quando os dias passam a terminar por volta de 19 ou 20 horas e não mais em torno de 16 ou 17 horas. Os sinto mais abertos, simpáticos e sorridentes. Reconheço também que fiquei mais aberta, simpática e sorridente nesta segunda metade de ano de intercâmbio. Alguns dos dias curtos do inverno foram de tristeza e lundu gratuitos. Sol faz falta, muita falta!

Sei que com o Sol e flores brotando nos parques e nas janelas das casas, brota também gente deitada na grama destes mesmos parques lendo seus livros, fazendo churrasco, jogando futebol, namorando ou apenas conversando. Algo muito interessante de se ver e que dá um estranha sensação de que algo bom está por vir.


Antes de ontem vivi à moda germânica imperdíveis 18°C num dia ensolarado e brilhoso. Digo imperdíveis porque dias de Sol são dias a serem vividos ao Sol, já que ainda há dias em que chove bastante e a temperatura fica em torno dos 10°C – afinal, flores precisam de água. E digo à moda germânica porque não hesitei em ir ler qualquer coisa num parque perto daqui.

Também antes de ontem as aulas do semestre de verão começaram. Sim, estamos mais abertos, eu e eles. Me fez bem fazer perguntas com sobrancelhas descansadas e leveza na fala. Outro bem foi receber respostas tão ou mais leves que minhas perguntas. Sei que estar habituada a este paradoxal cotidiano de novidades e já sentir Colônia como de certa forma minha colaboram para esta leveza e descanso, mas vi que ter Sol freqüentemente me faz muito, muito bem! Se vivendo por 24 anos numa cidade rente ao mar e ao Sol, sinto através de um crescente senso de vontade as alterações de ânimo que dias maiores e iluminados provocam, por que a gente daqui não teria também reações que mostrassem tais alterações, já que só os tem como agora durante meio ano, por assim dizer? Ainda é apenas começo de primavera, mas esta Alemanha ensolarada e versátil me faz um bem que até então desconhecia, sobretudo pela expectativa do ponto alto disso tudo: verão!

Susy Almeida

Colônia, 17/18.04.09

Crônicas do Velho Mundo novo - Se “Pode ser...” não pudesse ser

Certa vez me escreveram pedindo para que as Crônicas do Velho Mundo novo tratassem dos costumes dos alemães em si, e não tanto de minhas experiências. Embora acredite que as crônicas tragam nas entrelinhas muitos dos costumes da gente daqui – até porque escolhi o 'dito através do não dito' por querer renunciar a descrições enfadonhas e desinteressantes – e apesar de querer trazer, sim, minha perspectiva daquilo que é vivido, esta crônica precisava ser escrita.

No café da manhã de um dia destes, estavam na cozinha eu, duas alemãs, Aysche e Lydia, e um árabe, Maged. Aysche, alemã típica apesar do nome turco e dos tons escuros no cabelo e nos olhos, falou sobre uma colega de trabalho. Disse que esta garota a adicionou no StudiVz, que é um site de relacionamentos onde estudantes universitários do país inteiro se encontram, por assim dizer. O fato é que Aysche não hesitou em negar o convite nem em justificar a negação. Escreveu para a menina uma sincera justificativa que tomo a liberdade de traduzir:

"Olha, sinto muito, mas não vou adicioná-la. Nada contra você. Até a considero bem inteligente, mas é que nunca poderemos ser amigas. Nossas características simplesmente não batem e por isso acho que não dá."

Boa parte de vocês está pensando agora: “Meu Deus, como eles são brutos!”, englobando neste eles os alemães todos! Mas já estou aqui há mais de sete meses e sei que, inclusive no que diz respeito à minha colega de Wohnheim, não se trata de grosseria. Gente grosseira existe onde houver gente e dizer que os alemães são grossos é o mesmo que dizer que no Ceará todos são como Seu Lunga. No caso de minha colega, que acredito ter sido a alemã da Wohnheim que mais foi gentil comigo até agora, trata-se de uma característica – essa sim – bem alemã: a incrível capacidade de ser direto, de dizer sim ou não e assim escapar o mais que se pode das situações que não se quer criar ou viver.

Maged perguntou um tanto abismado: “Mas como assim você diz algo deste jeito?!”. Minha colega não titubeou: “Ora, é melhor do que aceitar o convite e sempre ter que evitar a menina quando ela aparecer na minha frente! Não dá! Ela só fala de si o tempo inteiro e não ouve ninguém! Sempre interrompe os outros pra poder falar!”. Rindo um pouco da situação, discutimos o que teria sido mais superável para a menina que foi preterida, digamos assim – se é que ela havia se importado com isso. Aysche disse ainda ter se disponibilizado para dizer a ela, caso quisesse, que características eram assim tão divergentes ao ponto de impedir uma amizade. As coisas aqui parecem realmente ser preto no branco.

Me lembrei, então, de minha irmã mais velha e minha melhor amiga. Acredito que ambas aproximam-se um pouco mais desta objetividade e, claro, declinam daquele “Pode ser...” brasileiro pronunciado com um meneio leve de cabeça para o lado que em boa parte das vezes quer muito mais dizer que não pode ser. Claro, exatamente por isto já vi as duas serem tidas por antipáticas ou mesmo soberbas. E me lembrei das situações chatas em que me meti porque a tal objetividade faltou, de circunstâncias em que ser clara e direta teria facilitado a vida, por mais que se tratasse de algo bobo como um convite ou scrap no Orkut, por exemplo. Lembrei também das inúmeras vezes em que vi gente falar mal dos outros – e aqui me incluo – sem sinceridade suficiente para dizer à pessoa tema da conversa o que traz ou não traz problemas e assim resolvê-los, quem sabe.

Dias depois perguntei à Aysche como a história toda havia terminado. A menina considerou a resposta dela, sobretudo a parte sobre ela dizer que características eram tão divergentes. Perguntou à minha colega de Wohnheim e ela foi novamente clara: falou tudo o que havia nos dito. Com muita educação e gentileza, mas disse! A menina agradeceu a sinceridade. Parece ter visto nisso ensejo para pensar sobre si. Conheço umas poucas pessoas que ouviriam dessa maneira uma crítica vinda de alguém que na verdade nem íntimo é. Bem poucas. E não me incluo neste grupo. Não quero que se pense que se trata daquele comportamento “provincial” que diz que tudo que é de fora é melhor – na verdade, em termos de comportamento, este é um dos que mais repudio –, mas tem me parecido que o contraste do preto com o branco é, sim, digno de ser feito, que seria melhor se o “Pode ser...” de que falei acima não pudesse ser.

Susy Almeida

Colônia, 02/05.04.09

Crônicas do Velho Mundo novo - Quatro vezes Hamburgo

A primeira vez em que ouvi falar de Hamburgo foi ainda no colégio. No tempo em que estava bem feliz com meu curso de inglês e nem pensava em estudar alemão. Não faz tanto tempo assim, mas uma vez que isso deve ter sido quando eu tinha mais ou menos 15 anos e já tenho mais ou menos 25, tenho a impressão de que já foi há um bom tempo. Se aquilo que se caminha no chão da existência for o que confere a sensação de distância temporal a alguns fatos de nossa vida, então já faz um bom tempo. Sei que foi na aula de História e falou-se sobre a importância econômica e política de Hamburgo para a Alemanha no que se refere às atividades desenvolvidas através do porto desta cidade lá pelos séculos XII e XV.

A segunda vez em que ouvi falar de Hamburgo foi na faculdade. No tempo em que estava bem feliz com meu curso de alemão e pensava que precisava voltar a estudar inglês pra evitar que a fluência na língua se fosse. Não faz mesmo tanto tempo assim. Tinha uns 21 anos. Mas aquilo que caminhei no chão da minha existência de lá para cá também me confere uma estranha sensação de distância temporal. Sei que foi quando Paola, amiga que ouviu a aula de História do parágrafo anterior na mesma sala de aula que eu, mudou-se para lá. A mãe havia casado com um alemão e por isso Paola passaria a morar também na Alemanha, mais precisamente em Hamburgo. Inveja! Não pela mãe ter casado com um alemão, mas por não poder conhecer a Alemanha também. Mas não foi aquela inveja pungente que aniquila a felicidade que se sente pelo outro. Não. Foi só a vontade de querer algo também para si, e não unicamente para si.

A terceira vez em que ouvi falar de Hamburgo foi logo depois de ter chegado aqui. Philipp, alemão que estudou seis meses em Fortaleza e com quem gastei algumas horas aprendendo alemão, ensinando português e mostrando a cidade, passou a morar lá com a namorada. Havia se mudado para lá com ela por razões profissionais e, claro, amorosas. Muitos alemães e alemãs vivem longe de namoradas e namorados por causa de estudo e coisas afins. Nada mais natural que querer encontrar um canto em comum onde se possa ter sossego e amor quando o período de faculdade acaba.

Quando o ano virou, coloquei como uma das metas para 2009 visitar Hamburgo. Tanto entenderia melhor aquela aula de História que nunca me saiu da cabeça quanto veria Paola e Philipp de novo. Fui. De trem. O sentimento de estar na plataforma de uma estação é mais gostoso que o de estar numa sala de embarque. Entrando em Hamburgo, no trem ainda, vi guindastes, contêineres e barcos, muitos barcos. A aula de História.

Na estação encontrei Paola de braços abertos e com uma ovelha de pelúcia na mão. Presentes de boas-vindas. Sei que já falei dela numa das primeiras crônicas, mas sempre que encontro Paola entendo o que Kevin Arnold, personagem principal de Anos Incríveis – série americana transmitida pela TV Cultura quando eu tinha uns dez anos –, quis dizer num dos episódios quando disse que “certas coisas não mudam nunca. Certas coisas permanecem”. Paola ainda tem o mesmo sorriso e o mesmo jeito de brincar. Claro, algumas de nossas brincadeiras apimentaram-se porque afinal a própria vida apimentou-se, mas o jeito com que ela as faz e reage às que eu faço ainda é o mesmo. Entre lembranças e novidades que se tem dos colegas do colégio ou conversas sobre idéias e experiências que têm composto a vida de cada uma, conheci o rio Elba, a prefeitura, o centro, o porto, o bairro onde as mercadorias eram armazenadas, um navio aberto à visitação e a avenida Reeperbahn, famosa pelo excesso de sex shops – e o que o acúmulo deles significa – e por conseguir unir gente de classe alta e baixa. É que a avenida não tem só sex shops, mas também teatros e restaurantes aonde vão, segundo me disseram, mais pessoas de classe alta – embora eu acredite que os de classe alta também vão para lá pelos mesmos motivos que os de classe mais baixa vão.

Encontrei Philipp na noite do dia em que cheguei. Ele e Jenny, sua namorada, me hospedaram. Um apartamento que declara quem e como são os donos – fotos espalhadas pelos cômodos e livros e objetos que bem entregam algo sobre a personalidade de quem os possui –, uma sala de estar cheia de livros e um sofá-cama para amigos. E gente pra rir, conversar e convidar para um jogo de futebol. No dia seguinte à minha chegada, os times Hamburger Sportverein, da Alemanha, claro, e Galatasaray, da Turquia, jogariam na cidade hanseática e a hospitalidade masculina de Philipp expressou-se através de um convite para ir ao estádio e assistir ao jogo. Não sou fã de futebol. Na verdade, nem gosto. Meu pai, ex-jogador, até tentou empolgar pelo menos uma de suas três filhas pelo esporte – carências de quem não teve “filho homem” –, mas sem sucesso. Porém nunca havia ido a um estádio e lugar onde há muita gente é, para quem estuda a língua e a cultura de um povo, pesquisa de campo! Sobretudo quando se trata de Alemanha versus Turquia. Comprei o ingresso e fui. 50.500 torcedores e um estádio que trouxe à minha memória as imagens dos jogos de Playstation. Alemães e turcos vibrando muito, naquele misto de quase raiva e euforia. Confesso que estava um tanto perdida. Chegamos atrasados e não vimos os times entrarem em campo. A cor padrão do uniforme de cada time estava trocada – alemães de vermelho e turcos de branco – e por causa desta troca estranha, admito, torci até o primeiro gol pelos turcos. Ainda precisei de uns instantes após o gol para entender quem era quem. É, pai, não deu mesmo...! No segundo tempo os alemães fizeram um gol e pude reparar meu engano. Vibrei mais que no primeiro: pelo gol e por ter entendido quem era quem!

Fui embora dois dias depois do jogo. Com uma vontade planejada para 2009 já realizada e com boas lembranças de Paola e Philipp. Uma das coisas que ocorre ao se conhecer lugares até então conhecidos só de ouvir falar é que se reformula a noção que se tem deles. O lado de lá das coisas ouvidas passa a ser seu também, ainda que brevemente. Ou as coisas anteriormente ouvidas nem vêm à lembrança após sua nova concepção fundamentar-se. E quando vêm, é só como um detalhe. Hamburgo não é mais a lembrança da aula de História nem onde Paola e Philipp moram. É o que vi, conversei e conheci. É esta crônica aqui em gestação latente e óbvia.



Susy Almeida

16/17.03.09

domingo, 24 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Paris, Paris ou A Crônica do Deslumbramento


Paris é um assombro, um deslumbramento, uma falta de ar, um aperto no peito! Paris é um susto de beleza e significado! Várias vezes me peguei surpresa e suspensa pelo esplendor daquilo que entendi ser uma das expressões do que se entende por glória humana, a saber, a cidade que se chama Paris. Pode ser que algum experimentado em viagens sinta no meu discurso um tom piegas e espantado demais. Que o sinta! As primeiras experiências nos dão mesmo tons piegas e espantados! Paris foi um sonho dentro de outro sonho! O lado de lá de alguns textos lidos e a impressão de imagens anteriormente digitais.

Chorei ao ver Paris à noite do último andar da Torre Eiffel. Lembrei minha mãezinha e a história dela, que é de certo modo também minha. E lembrei a minha própria e as inúmeras vezes em que ela foi uma mãe sensacional e me disse coisas sem as quais eu não teria tido nunca coragem pra insistir em ir além dos meus medos. Chorei. Maria, que me mostrou Paris com a propriedade de quem a conhece de ouvir falar e de viver, me perguntou num momento se estava tudo bem. Disfarcei e disse que sim. Mas meu silêncio durante a noite quase inteira fez com que ela percebesse que eu havia sido tocada. Até que ela disse: “Não é um vista que se tem todo dia, né?”. Não mesmo. E também não se vive todo dia uma vontade que até pouco tempo era distante, sobretudo uma vontade que também é de uma mãe que bem merece viver tais coisas...

O Museu do Louvre evocou em mim a música Hollywood, de Chico Buarque, que conheci assistindo a Os Saltimbancos Trapalhões:

Ói nós aqui
Ói nós aqui
Hollywood fica ali bem perto
Só não vê quem tem um olho aberto

Com a diferença de que interiormente não “ouvia” Hollywood, mas Paris. O Louvre expressa aquilo que se entende na Terra por magnitude e imponência. Lá encontrei obras e pessoas de importância reconhecida pela humanidade, inclusive Deus. Afinal, não é só em manjedouras que Ele está. Algumas pessoas fazem perguntas a Deus quando vivem momentos ruins e difíceis, de injustiça diante do bem que elas acreditam merecer e muitas vezes de fato merecem. Após um encontro com Vitória de Samotrácia, Vênus de Milo, Mona Lisa e – quebrando o paradigma – o ator Malvino Salvador, que fazia o personagem Damião em A Favorita, sentei num dos bancos do museu. Um aperto no peito. Não pelo ator – a bem da verdade, nem lembrei o nome dele ao pedir para bater um foto –, mas pelo estranhamento que aquele instante mágico trouxe. E foi quando questionei a Deus: “Como assim? O que é isso tudo?”. De fato não acredito que Deus barganhe com o ser humano, mas acredito que o que Ele nos proporciona tem fim e alvo, inclusive fim e alvo que Lhe digam respeito, e por isso O perguntei quais seriam o alvo e o fim pensados por Ele. Não, não ouvi resposta, mas senti que naquele momento tudo o que tinha a fazer era continuar vivendo meu fabuloso Xanadu e acreditar que o propósito divino se dará com a mesma naturalidade com que estar diante de Mona Lisa e Vênus de Milo se deu. Saí do museu quando ele fechou. Malvino Salvador também. Ele saiu abra
çando a namorada e rindo muito com ela. Saí pensando na dimensão daquele dia pra mim. E eu que nem sonhava conhecer o tal Recife...

O Palácio de Versalhes foi meu último grande susto. Lá vivi sensações semelhantes às vividas no Louvre. Sempre que visito algo histórico, imagino as pessoas que viveram a história no instante em que ainda não havia historicidade e as histórias singulares dos que passaram por lá depois de haver historicidade. Ao me ver no meio de tantos outros visitantes, entendi que Luís XIV atinge seu objetivo de mostrar-se grande e altivo até hoje, afinal o palácio construído por ele ainda atrai, digamos assim, absolutamente. Não pude deixar de me perguntar se um dia lhe passara pela cabeça que gente de todo lugar desta Terra entraria em seu quarto, sobretudo gente sem o menor interesse em lhe prestar reverência nem mesmo concordando com sistemas absolutistas e afins. Ainda no quarto do rei, pensei que tudo deste mundo realmente passa, por mais grandioso e imperecível que possa parecer. Saí de lá pensando no que uma pessoa só, entendendo reinados e poderes de modo minimalista, é capaz de alcançar e construir. Pensei também em Deus. Me lembrei de um verso bíblico que diz que Deus preparou coisas maiores que as que o olho humano pode contemplar para aqueles que o amam. Achei Versalhes de uma grandeza silenciadora e fiquei imaginando o poder de estupefação dessa grandeza superior situada além de nossos paradigmas.

Deixei Paris com sentimentos oscilando entre a melancolia e o êxtase. Paris é, sim, um sonho de cenário, tem paus-de-araras milionários e índios cheios de saúde - o que é, então, o eixo histórico de Paris se não for um sonho de cenário? E seus metrôs automáticos nada mais são que paus-de-araras supermodernos e milionários. E seus mendigos às vezes um tanto bem vestidos que abordam turistas com um prático 'Do you speak English?' , os índios cheios de saúde da música Hollywood.

"Quem há de negar que é bom dançar, que a vida é bela neste fabuloso Xanadu?" foi o que ficou neste meu coração ao sair de Paris. Agradeci muito a Deus pelos dias lá e porque os vivi com toda a força e intensidade possíveis. Já de volta a Colônia lembrei que ainda tenho uns seis meses antes de cair da tela ou, melhor dizendo, antes de simplesmente sair dela. Diferente do que se diz em Hollywood, não tenho medo disto. Teria medo se me visse nela e não me sentisse vivendo o que me é dado viver com tudo o que posso viver!

Susy Almeida

Colônia, 03/04.03.09

Crônicas do Velho Mundo novo - Viva la Vida!


Vou a Paris...

Reformulei diversas vezes a crônica na tentativa de dizer isto de um modo marcante. Todas me pareceram, como diz Machado, maçantes – e demais! Achei, então, que colocar uma das mensagens da crônica num parágrafo só, exatamente o primeiro, e seguida de reticências poderia transmitir meu espanto e ansiedade diante da realidade de que visitarei Paris.

Vou a Paris... Não falo francês – não ainda –, mas Paris não é cidade que não se visite apenas por não se falar a língua, ainda que se diga que os franceses não gostam de falar inglês. Sobretudo não é cidade que se deixa de visitar quando se tem a sorte – no sentido de felicidade – de morar num país vizinho à França. A idéia de ir para lá amadureceu por volta de novembro, quando pensei nas coisas que não gostaria de deixar de fazer antes de voltar para casa. Após dar a idéia para Maria e saber que ela já estaria de todo modo lá em fevereiro, decidi ir com ela. Ao encontrar um ticket promocional de Colônia até Paris pela bagatela de 62 €, não pensei muito antes de comprá-lo.

Depois de comprar a passagem, lembrei-me das coisas que sabia sobre a França: Absolutismo, Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Champs-Élysées, Museu do Louvre, Catedral de Notre-Dame, Amélie Poulain e barrete frígio, gorro vermelho usado pelos republicanos franceses na Tomada da Bastilha e que também aparece sobre a cabeça de Marianne, mulher que encarna a República Francesa e que guia o povo francês no quadro de Delacroix.



Não sei bem porque razão, mas a imagem do barrete da liberdade eu nunca esqueci. Talvez porque gosto de boinas que foram usadas em momentos importantes na História. Ou talvez porque gosto da idéia de liberdade e seus símbolos. Sei que a imagem ficou.

Ao comprar a passagem lembrei muito minha mãe e minhas irmãs, incluindo aqui a Maura, amiga-irmã pra mim e minhas irmãs e amiga-filha pra minha mãe. Elas, sim, sempre demonstraram mais interesse pela França do que eu. Minha irmã caçula, inclusive, estuda francês. Ao me ver com o ticket guardado na bolsa, vi mais uma vez que a gente leva quem ama aonde vai, porque desde que comprei a passagem tenho vontade de viver essa experiência por mim e por elas. Talvez seja tudo só um pensamento de fuga que meu cérebro cria para ter a ilusão de que terei esta vivência ao lado delas. Mas também talvez seja a sensação de deslumbramento ao ver tornar-se real algo que era, há um tempo, só brincadeira. Lá em casa sempre teve muita frase do tipo “Quando eu estiver em tal lugar, farei isso ou aquilo!”. Coisa que no momento a gente vê como algo distante, embora tenha muita vontade e se esforce por trazer aquilo pra perto.

Quase todos os dias tenho pensado no que posso fazer em Paris e sentido a expectativa tornar-se até arriscada dentro de mim. Quero todos os museus que puder visitar, quero todas as visões que puder ter a partir da Torre Eiffel e da própria Torre, quero andar a Champs-Élysées inteira, quero ver a quitanda de Collignon, onde se passam algumas cenas de O fabuloso destino de Amélie Poulain, e quero dormir só o estritamente necessário. Quero!

Quando vi a capa do novo CD do Coldplay, não entendi muito a relação pretendida entre a frase Viva la vida! e o quadro de Delacroix.



Às vésperas de ir à França e sentindo no peito uma vontade de viver esta experiência com tudo o que ela pode me oferecer, por mim, por minha mãe e irmãs, esta imagem ganha um sentido muito pessoal e soa até como uma ordem: viva a Vida!

Susy Almeida

Colônia, 10/11.02.09

Crônicas do Velho Mundo novo - De 2008 para 2009 ou Os segredos dos anos


Já faz quase um mês que 2009 começou, mas a crônica do dia de São Silvestre ainda não foi escrita e ficou durante quase este mês inteiro indo de um lado a outro da minha cabeça, enquanto outras idéias chegavam e brigavam com ela por algum espaço.

Se as festas de fim de ano são passadas com gente conhecida, com família, amigos ou namorado, o Réveillon 2008 / 2009 foi vivido com gente que conheci e só vi, pelo menos até hoje, naquele dia. Com exceção da Katharina, primeira alemã que se tornou minha amiga e que vivenciou comigo os últimos dias do ano, e a Johanna, alemã que conheci na igreja que visito aqui, os outros todos me foram apresentados poucas horas antes de entrar neste ano. Sim, lembrei o tempo todo da minha família e do meu amor. O Réveillon 2007 / 2008 foi bem revivido e relembrado, embora não tenha falado a ninguém dele. Mas deixei a sensibilidade e a atenção abertas às peculiaridades de uma virada em terra estranha, no sentido apenas de não ser a própria.

Mais ou menos no fim de novembro, Johanna me convidou para passar a virada com ela e seus amigos numa noite de comes-e-bebes. “Eu e meus amigos vamos organizar uma festa e acho que seria bem legal pra você. Com certeza você vai conhecer muita gente e vai falar alemão a noite inteira.”. Verdade. Éramos mais ou menos umas catorze pessoas, talvez mais, entre gente extrovertida, introvertida, sorridente, não tão sorridente, ébria e sóbria. Gente estrangeira apenas eu e uma francesa de uns olhos muito curiosos e muito parecida com a Lara, irmã que a Vida me deu. Sei que entre perguntas, Coca-Colas e respostas, deu 11:50. Fomos pra rua esperar os últimos dez segundos do ano. Senti um certo nervosismo ao ver que 2008 estava realmente indo. Com ele ficariam definitivamente para trás fatos de peso e valor enormes pra mim. É que amei em 2008. Entendi nesse ano de que disposições da alma são escritos versos como os que dizem “Eu voltei por entre as flores da estrada / Pra dizer que sem você não há mais nada / Quero ter você bem mais que perto / Com você eu sinto o céu aberto”. Em 2008, ouvi o brado de Vida que vem de alguma dimensão da nossa alma quando côncavo e convexo já nem mais existem. E não se deixa um ano assim tão facilmente.

Meia-noite. O ano novo entra explodindo em fogos de artifício azuis, roxos, verdes, vermelhos e amarelos e os mesmos alemães que cruzam comigo todos os dias na rua sem dizer palavra gritam e distribuem “Feliz ano novo!” a quem passa. Desejo à Katharina, à Johanna e aos amigos dela um bom ano e todos me desejam o mesmo. No silêncio interior que na maioria das vezes consigo construir pra mim quando fora tudo é inquieto demais, orei. Sempre se pede a Deus algo quando um ano começa. Ou sempre se promete algo a Ele ou a si. Mas algumas orações são íntimas demais e merecem ficar guardadas, como num segredo entre o ser humano e Deus. É o que penso dever fazer com essa. Mantê-la guardada na minha alma para que somente Ele tenha acesso enquanto não chega o tempo de materializá-la em resposta. Mantê-la como segredo sagrado de segredos futuros e passados.

Mais ou menos 00:20 voltamos todos para o apartamento de Jan e Lina, os anfitriões da noite, e hora e meia escorreu entre conversas, Coca-Colas e músicas. Voltei para casa com a Katharina por volta de duas da manhã. Conversei, pouco antes de ser meia-noite no Brasil, com o moço que ouviu comigo o brado de Vida de que falei há pouco. Relembramos alguns segredos e criamos outros para 2009. Como fiz ao falar com Deus. Liguei para minha mãe pouco depois de ser meia-noite no Brasil. Disse a ela que a amava e ouvi seu riso lindo e que tanto me alegra. Desejei a ela um 2009 cheio de vida. Deitei para dormir com uma certa curiosidade sobre as coisas por vir, com um anseio bom dentro do peito. E com uma certeza que, embora óbvia, me impulsiona adiante de alguma forma: 2009 começou.

Susy Almeida

Colônia, 25/26.01.09

sábado, 16 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Maria, Maria


"Engraçado, vocês se conheceram hoje, mas parece que já faz um bom tempo”. Lembro de o Léo, amigo querido e psicólogo há pouco tempo, ter usado exatamente estas palavras ao falar de mim e da Maria, depois de um passeio a três lá pelo fim do mês de julho de 2007, quando Maria visitou o Brasil pela primeira vez. Sim, havia conhecido Maria pessoalmente naquele dia de manhã bem cedo. Até então ela era um perfil entre a lista de amigos no Orkut e colega de um amigo brasileiro que mora em Munique.

Penso que um dos eventos da vida que prescinda de explicações, até porque afeição não se explica, seja exatamente esta capacidade de afeiçoar-se a outros – ou negá-los – sem que aparentemente haja motivo. Algumas pessoas parecem ter uma certa ressonância com a gente. O fato é que desde o começo eu me entendi muito bem com a Maria. Abri as portas da minha casa, apresentei minha família, mostrei meu quarto, livros e CDs, minha cidade, meus lugares preferidos e até alguns segredos – porque falar da vida em língua estrangeira é mais fácil que em língua materna.

Pouco mais de uma semana depois Maria foi para Teresina, morrer de calor e conhecer um pouco mais do Brasil. Mas este mundo pós-moderno bem tem seus artífices para relativizar distâncias e assim a gente sempre manteve contato e acompanhou os acontecimentos da vida uma da outra. Além disso, quem já se falava constantemente a um oceano de distância e sem se conhecer não poderia deixar de se falar estando por assim dizer ao lado e já tendo se conhecido. Sei que Maria conheceu o Brasil mais que eu e foi embora em outubro de 2007, não sem passar em Fortaleza seu último dia e sem dizer que ficaria muito feliz se pudesse me ver na Alemanha em 2008. O tempo foi passando e ela soube de muita coisa que ocorreu no meu mundo entre novembro de 2007 e agosto de 2008, assim como eu também soube de muita coisa do mundo dela. Uma das coisas interessantes em ser mulher é a capacidade de fazer com que a alegria ou tristeza da outra sejam “suas” mais rápida e profundamente que os homens – pelo menos assim escuto desde (o meu) sempre. Lembro de ela ter ficado feliz ao saber do Thomas, meu precioso bem-querer e amor, e ao saber que me veria ainda em 2008. Lembro também de ter ficado feliz ao saber que ela iria passar uns bons meses em Paris e ao saber, ao longo destes bons meses, de um certo francês.

Ver Maria foi muito bom! Ela me abriu as portas de sua casa, apresentou sua família, mostrou seu quarto, livros e CDs, sua(s) cidade(s), seus lugares preferidos e até alguns de seus segredos – porque é preciso falar da vida, ainda que em língua materna. Conversamos sobre tudo: amor, faculdade, cozinha, cultura brasileira e alemã, inclusive as relações entre as duas, história, medos e anseios femininos, possíveis complexos históricos dos brasileiros e dos alemães, talvez um pouco de política, Deus e sexo. E de tanto falarmos de nossas vivências, eu, que considerava a música Maria, Maria, do Milton, uma música para a mulher brasileira, entendi que Maria também traz no corpo essa marca que faz com que se misture a dor e a alegria. Dar-se à dor nunca foi meio de extirpá-la. Vi ainda com mais clareza que Maria é de um som e de uma cor que se traduz em alerta, em raça, em gana. A vida de quem tem uns 20 anos bem consegue ter seus pesos e é preciso possuir a estranha mania de ter fé na vida. Vi que Maria, mesmo em meio a toda aquela explosão de idéias, atividades, pensamentos, vontades e inquietudes, poderia ser definida como uma mulher que merece viver e amar, assim como eu e outra qualquer do planeta. E vi que na vida é muito bom encontrar gente que é apenas... gente.

Susy Almeida

Colônia, 15 de janeiro de 09

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Sobre o fim de ano - Em bom cearês!


Fim de ano é fim de ano, seja em Colônia ou Fortaleza. Os comportamentos cearenses quanto ao Natal me parecem bem semelhantes aos daqui. Papai Noel, centro lotado, presentes e mais presentes e uma pretensa boa educação que se justifica em Fortaleza com um “Ai, é Natal! Não vamos fazer confusão!” e em Colônia com um “Es ist Weihnachten! Kein Stress, ne?”. E, claro, Natal se passa com a família, seja na Alemanha, seja no Brasil! Ou seja: jovens alemães que moram em repúblicas vão para as casas dos pais e estrangeiros europeus vão para os seus países. Resultado: num andar onde há em torno de 26 “reis” e “rainhas”, há no momento apenas uns seis. Com exceção de uma única alemã que viaja terça, os outros todos que ainda estão aqui são estrangeiros – não europeus, claro, porque uma passagem de ida e volta, a uma altura dessas do campeonato, para um lugar do outro lado do oceano é caríssima! O fato é que para não ouvir mais “Oh, que pena! Vai passar o Natal longe da família...!” sequer levantei minha mão quando o professor perguntou na última aula de alemão quem iria ficar por aqui no Natal e no réveillon. Nestas horas em que a pseudo-pena dos outros me irrita, prefiro pensar como a Lara, amiga mais que querida: “Ninguém precisa saber da minha vida! Sabe dela quem eu quero que saiba!”. Além disso, passar o Natal com a Maria, a alemã mais brasileira que conheço, em Munique e em Freihalden, uma cidadezinha que é, segundo ela, um jogo da velha, não é nada mal! Pelo contrário! Afinal, o Natal na casa da minha avó já é mais que conhecido por mim e um Natal na Baviera ouvindo Schwäbisch, dialeto da Maria, é coisa ainda não vivida por esta alma de já quase 25 anos!

Bom, mas a Wohnheim está isolada, como já dito. Contudo, coisas engraçadas ainda ocorrem com esta meia dúzia de estrangeiros remanescentes! O fato é que quase todos vão e voltam do banho enrolados em toalhas apenas – exceto eu e alguns poucos mais pudicos. Vai que eu topo no meio do caminho! É melhor evitar! Hoje, saindo do quarto, vi no fim do corredor Gombi, uma queniana estudante de Comércio Exterior, enrolada numa toalha comprida – ainda bem! – e Hassan, marroquino que estuda Ciências da Comunicação e síndico do andar, numa situação um tanto engraçada: ela foi ao banheiro tomar banho e esqueceu a chave no quarto! Resultado: chamou o síndico para abrir a porta de algum jeito e lá estava o pobre com um ferro na mão tentando arrombar a porta. E ela atrás dele, suando, porque, além da situação chata, ainda estava atrasada para um compromisso! Depois de ver que não dava, Hassan desistiu e sugeriu que ela fosse falar com o síndico geral para ver se ele tinha uma chave extra. Ela, triste, fez que sim com a cabeça e começou a descer as escadas. Fiquei com pena da coitada descer três andares enrolada numa toalha e me ofereci pra ir. Com o susto que ela tomou, vi que ela não esperava por isso, mas agradeceu um tanto sem jeito e disse “Se você puder...”. Pude. Desci e expliquei à mulher do síndico a situação. Ela começou a rir e disse: “Tenho uma chave, sim. E conheço a situação. Quando os rapazes vêm aqui só de toalha me pedir a chave, eu digo “Mas que bom, hein?!””. Peguei a chave sem perguntar por estes rapazes nem com que freqüência eles esqueciam a chave e subi os três andares pra retirar a bichinha daquele constrangimento. Desde que cheguei em Colônia, nunca vi ninguém se alegrar tanto com minha chegada no andar como hoje! Parecia que eu trazia a salvação. E trazia mesmo! Ela abriu a porta e em dois tempos vestiu-se. Fui pra cozinha fazer meu almoço e, em seguida, ela chegou ainda mais atarantada com o atraso, agradecendo várias vezes. Saiu pouco depois, não sem derrubar um detergente. Pensei: “Bicha atoleimada! Queria que minhas irmãs vissem isso pra nunca mais me chamarem assim!”.

Depois de cozinhar e almoçar assistindo à TV União daqui, o canal VIVA, vim arrumar minha mala. A partir de terça, o time de estrangeiros remanescentes ficará ainda menor. Como dito, Munique e Freihalden me conhecerão! Sim, estas cidades é que me conhecerão!

Susy Almeida

Colônia, dezembro de 08

Crônicas do Velho Mundo novo - Sobre o que aconteceu depois que Werther morreu

Terminei Os Sofrimentos do Jovem Werther cansada. Ler um alemão de 1774 e com tanta densidade emocional, acrescentando-se a isso como plano de fundo este clima de inverno que, como o próprio Werther fala, é inimigo do homem, não é fácil. Se no livro o clima é sempre uma figuração do estado interior de Werther, fica fácil entender porque ele se matou no inverno. Sim, terminei bem cansada, com dor de cabeça e disposta a fazer alguma coisa que fosse leve como a leitura do livro não foi. Televisão vem à mente nessas horas como promessa de escape e, principalmente, de companhia para o jantar. Depois que a pizza ficou pronta, liguei a TV em busca deste tal escape e achei, com uma certa surpresa, o BBD, Big Brother Deutschland! Havia quatro participantes numa sala escura, dois homens e duas mulheres, que deveriam literalmente se melar com um gel bem fluido e mudei de canal. Não tive paciência pra esperar o “propósito” da prova. Queria algo leve, mas não precisava ser vazio. Além disso, suponho que não faça bem à mente de ninguém sair de Goethe e entrar assim tão depressa no Big Brother. Achei Priscilla, a Rainha do Deserto e, embora acredite que “I will survive”, mudei de canal. Achei um documentário sobre os últimos dias de Hitler que fazia uma análise psicológica de sua mente e daqueles que estavam mais próximos dele. Nada leve, mas fiquei com essa opção e ouvi um pouco mais sobre os que se atêm fixamente a idéias, vão além da determinação e obstinação, enlouquecem e (se) matam ou morrem em nome delas. De fato, nada leve.

Já no fim do programa, Aysche e Lydia, versão feminina e alemã de Batman e Robin e “rainhas” dos quartos 305 e 326, chegaram. Lydia viu o que eu estava assistindo e suas sobrancelhas erguidas acompanhadas de um movimento com a boca que sempre se faz quando se despreza algo me mostraram que pra ela há temas mais interessantes. Fiz de conta não ver, afinal cheguei primeiro e o poder – leia-se controle remoto – estava na minha mão! Além disso, não é todo dia no Brasil que a gente tem em canal aberto um programa fazendo uma análise psicológica de gente que conseguiu ir tão longe fazendo tanto mal! Para alegria dela, o programa terminou uns dois minutos depois. Passei, então, o poder adiante e Aysche foi vendo todos os canais até achar algo, no mínimo, engraçado: uma astróloga faz atendimentos na televisão, ao vivo, em tempo recorde! É mais ou menos assim:

- Olá, em que posso ajudar?
- Gostaria de saber se vou conseguir um emprego.

A astróloga vira meia dúzia de cartas e diz algo como:

- Vai demorar um pouco, mas vai dar certo. Tchau! Tudo de bom! Próximo, por favor!

O interessante é que tudo vai dar certo. E tudo é “revelado” numa fração de segundos! Mais interessante ainda é as pessoas ligarem!

Depois de rir de uns dois telefonemas, procuramos outra coisa. E outra coisa e outra coisa e outra coisa. Muito mais conversamos e rimos dos programas que encontramos do que assistimos a algo. E a leveza que eu queria estava justamente ali, em não assistir a nada, mas em ter, ainda que por uma meia hora e apenas pra rir, com quem não assistir a nada.

Susy Almeida

Colônia, dezembro de 2008

Crônicas do Velho Mundo novo - O calor dos alemães

O clichê diz que os alemães são frios, grossos, antipáticos e reservados. Fico apenas com o último adjetivo. Sim, são reservados. Frios, grossos e antipáticos não. Pelo menos não em regra, como também não é regra que todo cearense tenha uma tão conhecida característica “lunguiana”! O fato é que minhas andanças por esta cidade e por outras perto de Colônia me fizeram ver que os alemães são calorosos. Mas calorosos de um calor que eu chamo de escolhido e meticuloso. É preciso tempo para abraçar e andar de mãos dadas, mas se abraça – e até muito – e os casais que circulam pelas ruas mostram que as mãos se dão constantemente. Quanto ao quesito tempo, três meses no Brasil já seriam suficientes para duas amigas ou colegas se abraçarem, ainda que brevemente, mas em três meses eu dei ou recebi a quantidade incrível de dois abraços. Um quando Aysche, a “rainha” do 305, fez aniversário – e foi um abraço de “meio-braço” – e o outro quando uma italiana que morava aqui voltou para casa. Mas o carinho para com aqueles que já ultrapassaram as fronteiras do espaço individual merece ser comentado.

No restaurante universitário é onde mais exercito minha capacidade de observar os outros. E, sim, já vi inúmeros casais entrarem ou saírem juntos, mas um que estava hoje na fila perto de mim me chamou a atenção. Alemães típicos: ele e ela relativamente altos, loiros, brancos e olhos azuis. Vi na hora em que se beijaram de um beijinho simples e até infantil, sem deixar que o barulho e a gente toda incomodassem aquele momento. E vi na hora em que ele terminou o beijinho e ficou olhando pra ela, ainda na atmosfera que ele havia acabado de deixar, com um sorriso saindo pelo canto do olho. Foi quando ela abriu os olhos e olhou tão dentro dele, ao que ele respondeu com outro beijinho. Observando as reações e os olhares dos dois, pensei: “Sei o que é.”. E assim se deixaram ficar uns bons minutos, alimentando minha saudade de desempenhar aquele papel no Pici ou nas Casas de Cultura, como tantas vezes fiz com o Thomas.

Outro dia fui assistir à apresentação de um coral e vi logo que cheguei que havia muita gente entre 30 e 60 anos. Sentei-me atrás de um casal de idosos. E me deixei ficar contemplando os dois um certo tempo depois que a senhora, talvez 60 anos, beijou o senhor no rosto com uma felicidade de “Susy no cinema com o Thomas”. Procurei as mãos e elas estavam tão unidas...! Desde então tenho percebido quantos casais idosos andam na rua de mãos dadas e quantos, como hoje, conversam e riem um tanto alto. Parece, penso, que a expressão “estou-muito-velho-pra-isso” não tem muita validade aqui.

Ontem, na estação principal de Bonn, vi que o trem que estava na plataforma ainda demoraria alguns minutos para sair, o que me inquietou um pouco, porque meu cansaço queria meu quarto. Mas o que me inquietou com certeza tranqüilizou o coração da mulher de mais ou menos 40 anos que estava olhando para dentro do trem, já de portas fechadas. Olhei também e vi outra mulher de mais ou menos 40 anos um tanto parecida com a primeira, o que me fez supor que seriam parentes. Pouco depois o trem começou a se mover lentamente. A mulher sobre a plataforma colocou, então, a mão sobre o vidro da porta. A que estava dentro do trem, em resposta, também colou a mão ao vidro, na mesma altura da primeira. Tive um leve espanto. Aquilo me pareceu tão lindo! E assim a mulher sobre a plataforma acompanhou o trem até que ele arrancasse de vez. Quando virou-se, o rosto em lágrimas. Tive o ímpeto de perguntar quem era, mas me contive. Fiquei, assim, pensando nas mulheres de mais ou menos 20 anos que moram na minha casa e que tem uma certa semelhança comigo, o que faz com que todos que não nos conhecem suponham que sejamos irmãs.

Susy Almeida

Colônia, 01.12.08

Crônicas do Velho Mundo novo - Impressões de Gutenberg e Eco – em mim

Já ouvi várias vezes o nome de Umberto Eco. Menos vezes o nome de Gutenberg, mas já o ouvi. Já tive um contato, ainda que mínimo, com as contribuições destes dois homens a esse nosso mundo. O filme O Nome da Rosa e a semiótica estudada na faculdade atestam isso. E os livros de minha estante, tanto a daqui como a que está em Fortaleza, têm de um certo modo sua fonte naquele alemão nascido lá pelo século XIV.

Eco, dentre tantas outras coisas, escreveu o romance que dá nome àquele filme e vários ensaios sobre semiótica, filosofia e lingüística. Ainda é vivo e, segundo me consta, vive o fruto do seu trabalho. Vê as conseqüências das suas produções. Gutenberg, filho de um ourives, aprimorou a impressão tipográfica. Com o pai aprendera a manipular metais e criou os caracteres de metal, assim como uma prensa gráfica inspirada nas prensas de uva usadas na fabricação de vinho, atividade que ainda hoje movimenta a região de Mainz, onde viveu. Morreu no século XV e, segundo me consta, pobre. Não viu as conseqüências de suas produções.

Há pouco mais de uma semana visitei as cidades de Mainz e Wiesbaden. Era uma excursão organizada pela Universidade de Colônia. O que me fez optar por esta, já que mais três foram oferecidas, foi ver no programa “Visita ao mosteiro Eberbach, onde O Nome da Rosa foi gravado”. Eu, que assisti ao filme impressionada, fui a primeira a me inscrever. E viajei esperando muito mais ver algo em Wiesbaden que em Mainz. Mas meu coração foi um tanto tocado nesta cidadezinha pequena.

Algumas coisas aqui parecem ainda ter um certo tom de Idade Média. Lembrando Sociedade dos Poetas Mortos, em que o professor Keating pede aos alunos para “ouvirem” o que a história de ex-alunos fala a eles, parece que igrejas, vitrais e livros antigos sussurram algo. Concepções e visões de mundo de uma época inteira, de sociedades inteiras ficam evidenciadas em altares e atos de algum modo eternizados. Na catedral de Mainz há um altar barroco com duas estátuas em cada lado. No esquerdo, um esqueleto. No direito, um homem com uma foice na mão. Coisas que mostram a presença da morte nos nossos anseios e receios e parecem revelar que, sim, “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Ver uma Bíblia impressa na “máquina de Gutenberg”, como se dizia lá, me fez também sentir um certo espanto. É que imaginei aquele homem trabalhando anos a fio, criando algo que nos seria essencial, imprimindo um livro que nos é essencial e morrendo, segundo me disseram, bem pobre. E essa situação toda me sussurrou que a vida é injusta, mas também que nem toda justiça está aqui. Hoje, páginas soltas do Evangelho de João, do livro de Gênesis e de Apocalipse que ainda são impressas à maneira desenvolvida por ele são vendidas como souvenir. O primeiro capítulo do meu evangelho preferido irá comigo para casa e me sussurrará aprendizagens ainda por um bom tempo.

Em Wiesbaden, o mosteiro onde as tomadas internas do filme foram feitas mostra que ainda há muito aqui com um preciso tom de Idade Média. Quem assistiu ao filme, viu que há uma sala destinada à cópia das Bíblias, que, na época, era feita à mão. Esta sala, na verdade, era o dormitório dos monges que moravam lá. Lembrei da cena, nesta sala, em que um dos monges oculta ao outro um determinado livro – não me recordo qual – e lembrei de amigos cristãos e teólogos. Não porque eles ocultem algo. Talvez tenha sido exatamente o efeito reverso: o que durante tanto tempo foi escondido eles tentam mostrar.

Isso tudo me gritou, não mais sussurrou, que conhecer de ouvir falar é bom, mas conhecer porque os olhos vêem e a alma toca tem um valor incomensurável, eu diria. E meu coração não conseguiu fazer outra coisa que não fosse sussurrar um obrigada a Deus.

Susy Almeida

Colônia, 03.11.08

sábado, 9 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Reino Particular

Já falei aqui de que se constitui uma Wohnheim: estudantes, estudantes e estudantes, mas fisicamente falando são quartos individuais ao longo de um corredor imenso, uma cozinha e uma sala comuns para todos os habitantes destes quartos individuais e banheiros coletivos. Nosso quarto é nosso reino, como diz o manual de regras. Nele cada um faz o que quer, como quer e quando quer. E se não quiser também não faz. A sala, a cozinha e o banheiro devem ser usados sempre pensando no outro que vai usar logo em seguida. Devem, boa parte das vezes não são!

Quem me conhece sabe que me assusto com muito pouco. Imaginem, então, o susto que eu tomei semana passada ao entrar num dos banheiros pra tomar banho e dar de cara com uma cueca enorme largada lá sabe Deus por quem. Se fosse uma calcinha eu nem me assustava, porque venho de uma casa onde praticamente só há mulheres, mas uma cueca! E o pior foi ver ela ficar lá por uns dois ou três dias seguidos. Acho que não fez muita falta ao dono. Sei que do mesmo modo que apareceu sumiu, pra felicidade minha!

Ir pra cozinha é quase sempre uma surpresa, a depender do dia ou da hora, porque a gente não sabe quem vai estar lá, o que vai encontrar lá – porque o que fica de coisa estranha que as pessoas insistem em chamar de comida não é brincadeira! – nem como a cozinha vai estar – porque no fim de semana as pessoas parecem esquecer que são adultas e as coisas precisam ser lavadas e limpas depois de usadas. Digo no fim de semana porque na semana a gente tem a preciosa Frau Meyer, que é uma senhora super-simpática que, com certeza, deve ter uma impressão horrível de todos nós.

O fato é que na cozinha há três fogões de quatro bocas, três fornos, um microondas, uma torradeira, duas pias, cinco geladeiras e um armário individual pra cada morador. As geladeiras são divididas entre cinco pessoas. Um adesivo com os números 301 / 302 / 303 / 304 / 305 me mostrou que aquela seria a “minha” geladeira! Isso porque o quarto 303 é o meu reino! Já que tem tanta gente assim morando num único andar não fica difícil entender porque todas elas têm cadeados. Tudo é – ou deve – ser trancado pra evitar que alguém roube sua comida. Aprendi a importância disso depois de deixar por longas semanas “minha” geladeira sem trancar. Eu e as demais colegas de geladeira, claro – no 301 e no 302 moram duas chinesas; no 303, eu; no 304 e no 305, duas alemãs. Fizeram uma “limpeza” na nossa geladeira. Beberam uma Coca-Cola que eu havia comprado, um litro de leite que pertencia a uma das chinesas e comeram boa parte da manteiga de uma das alemãs. Desde então, cadeado sempre!

Ao lado da cozinha, fica a sala. Dois sofás marrons – um até rasgado –, uma televisão, um rádio antigo e enorme, algumas garrafas de cerveja e vinho e alguns pôsteres legais, como Kill Bill, um pôster do RJ que eu providenciei pra representar o Brasil de alguma forma e um mind warp. Esse é bem interessante: são vários círculos com miniquadrados que nos dão a impressão de girarem quando a gente olha. Há também muitas fotos de campos de futebol, que alguns meninos fizeram questão de colocar. Ainda bem que outras fotos e pôsteres que meninos fazem questão de colocar nas paredes não foram colocadas na sala! Essas, suponho, estão nos respectivos reinos particulares!

Susy Almeida

Colônia, 29.10.08

domingo, 3 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Sperrmüll, ora!

Bom, que os alemães têm aspectos culturais bem diferentes dos nossos já sabia. Entendo aqui por diferente o que não é nada usual pra nós. Por exemplo, a gente não come batata todo dia. A gente come arroz e feijão todo dia. Batata, às vezes. Outro exemplo: a gente não coloca tapetes, rádios ou sofás no lixo. Estas coisas, normalmente, a gente usa até acabar mesmo, até vermos que a tal coisa deu seu último suspiro. Os alemães, como vários europeus de outros países, não. Comprando algo de melhor qualidade, como um PC, o "velho" vai pro lixo. Ok, não pra lata de lixo, mas vai pro lixo. Vai pra calcada esperar que alguém o leve – seja alguém que quer mesmo o produto, seja alguém da limpeza. Esse é chamado, então, Sperrmüll. Sperren significa bloquear, fechar e Müll, lixo, ou seja, é um lixo que bloqueia mesmo a calcada – pelo menos assim entendo.

Já tinha ouvido que muita gente "decorava" a casa com coisas deste lixo, só que sempre achei isso meio distante e fantasioso. Até acontecer comigo! Indo hoje com o João, o bolsista anterior a mim, dar uma volta num parque aqui perto, vi de perto um lixo desses. Um lixo arrumado. E com um sofá-cama, duas estantes, um tapete, um monitor e várias outras coisas. Olhei pro João e disse: "Ei, eu preciso duma estante…" (porque no meu quarto só tem uma cama, uma mesa e uma cadeira, além de um guarda-roupa). O João nem hesitou: "Leva pra ti, menina. Ela é tao bonitinha.". E de fato é. Ri como nunca! Poxa, como é que se poe no lixo uma coisa ainda em pleno uso!? Fuçando mais ainda no lixo, achei um rádio-relógio dentro duma caixinha com o aspecto ainda de bem nova. Pegamos as duas coisas e saímos carregando no meio da rua. Eu e João rindo muito! Coisas que não se vivem no Brasil…! Pois bem, chegando em casa, coloquei minha estante num lugar legal e fui testar o radinho, que era a sensação pra mim. Abri a tal caixinha com aspecto de bem nova e, pra minha surpresa, o radinho estava dentro do saquinho original, com um lacrezinho e com manual de instruções!

"João, isso foi pro lixo por engano!"
"Ah, pois então a gente não volta pela mesma rua que é pra dona não pedir de volta!"
"Não, vamos por lá sim!"

Testamos o sonzinho (perfeito!), deixamos as coisas e fomos de novo pelo mesmo caminho. A tal dona havia colocado mais coisa ainda! Não custava nada ver se não tinha mais nada, né? Tinha! E pasmem: uma CPU e um teclado. Lembra que eu disse que havia um monitor lá?

"João, esse bicho deve estar bom ainda."
"É, mas vamos pro parque."

Começamos a ir, até que eu disse:

"Se não tivesse comprado o laptop ontem, eu levava esse PC pra mim.

João hesitou um pouco e falou:

"Devia levar pra mim, nera?"

Começamos a rir e voltamos. Ora, dito e feito. A CPU estava tao bem guardada que só podia estar prestando! João pegou o monitor e eu fui tirar a CPU do saco. Sabe o que achei? Um triturador de carnes e legumes.

"João, olha isso aqui!!"
"Mulher, leva pra ti! Tu vai precisar!"
"Tá, mas como a gente vai carregar isso aqui tudo?"

Lembram que eu disse que tinha uma mala sem alca? João:

"Tive uma idéia! Vamos botar dentro da mala!".

E disse isso com um sorriso do canto a outro do rosto. A CPU, o teclado e o triturador foram na mala, que, apesar de não ter alca, tinha rodinhas e podia ser puxada, e o monitor foi num saco gigante que tinha lá. Deixamos meu triturador novo em casa e fomos pra casa do João, que – diga-se de passagem – é longe que nem presta, com estas coisas todas. E isso de trem!

"Tomara que esse computador preste, ao menos pra valer o esforço todo. Tomara que seja pelo menos Windows 98…"
"É mesmo, João. Tem que prestar!"

Chegamos na casa do João e ligamos imediatamente tudo. A luzinha da CPU ficou verde. A luzinha do teclado ficou verde. O monitor ficou verde e começou a fazer aquele ruidozinho característico de quando está ligando. A expectativa gigante pra ver se prestava mesmo e qual Windows era. Até que, enfim, apareceu como que num show de ilusionismo „Windows XP“!!! Dá pra acreditar?! E com todos os programas que normalmente se precisa inclusos. Com programa até demais, eu acho! Como eu disse pra ele, coisas que a gente jamais viveria em Fortaleza!

Voltando pra casa, liguei meu radinho novo enquanto ajeitava umas coisas. Achei um hit parade daqui. Guardei duas posições apenas. Em quarto lugar, ficou uma música do Coldplay, Viva La Vida, uma musiquinha até bonita, e, em primeiro lugar, pra espanto e orgulho meu, die Brasilianerin Vanessa da Mata, com Boa Sorte. Mal acreditei quando ouvi o nome com pronúncia mais que gringa. Me senti muito dona daquele momento. Parecia que a música era minha! Aumentei o som e fiquei imaginando uma possível reação da Maura, que adora essa música, ao saber disso. Enfim, coisinhas vividas na Alemanha.

Susy Almeida

Colônia, 26.09.08

Crônicas do Velho Mundo novo - A alemã e o francês

Num prédio onde moram apenas jovens deve haver, no mínimo, coisas interessantes ou excêntricas acontecendo. Talvez não tao excêntricas, mas, acredito, interessantes. Quando estes jovens vêm de toda e qualquer parte do mundo, supõem-se que estas coisas sejam ainda mais interessantes. Ou, quem sabe, de fato excêntricas. É assim uma Wohnheim: uma espécie de pensão para estudantes e, como já disse, de várias partes do globo. Viver num local como esse oferece, pra quem gosta de observar pessoas, gestos, costumes, atos, olhares, sons e outras tantas coisas observáveis e apreensíveis, um caleidoscópio daquilo que se chama vida. Ainda que em manifestações engraçadas ou – para não repetir excêntricas – estranhas.

Lembro da primeira alemã que conheci aqui. Ela se chama Anne. Na verdade, Annika. Num primeiro momento, bem simpática, perguntas costumeiras: “Você é nova aqui?”, “De onde vem?”, “Estuda o quê?” e, em seguida, o já esperado e distante “Olá, como vai?”. Me pareceu alemã típica: loira, olhos azuis e reservada, exceto pela altura – é menor que eu! Desfazendo um pouco da reserva conversamos sobre os respectivos namorados. Eu comecei, claro:

“Ai, que saudade do meu namorado...”
“Ah, também tenho saudade do meu.”
“Ué, ele não tá aqui?”
“Que nada! É francês, mas vem me visitar em breve!”
“É, espero que dê certo o Thomas vir me visitar também.”
“Bom, torço por vocês!”

O francês veio afinal! E até, então, eu não havia visto ninguém aqui sorrir pras paredes! Incrível ver como o amor faz bem. Eles estavam mesmo muito felizes e era até agradável ficar perto dos dois. Foram umas duas semanas de risadas vindas do banheiro, risadas vindas da sala, risadas vindas do final corredor e risadas vindas até da varanda! Mal acreditei quando vi, num dia de sol lindo, eles dois na varanda e ela até gritando pra uma amiga no meio da rua, o que é bem raro aqui. O que eu não sabia era que aquele dia era o dia de ele ir embora. Um pouco mais tarde a encontrei na cozinha só, o que nas últimas duas semanas não tinha acontecido, com o olhar fixo num ponto qualquer e a TV ligada como quando se liga apenas pra se ter a sensação de não estar só. E reconheci naquilo tudo as vezes em que fixo meu olhar num ponto qualquer, numa imagem qualquer lembrando do Thomas. Qualquer pessoa que vê de fora sabe que o que menos se faz nesta hora é ver.

“Seu namorado já foi...?” – Ousei perguntar.

Um “Sim...” que escapou pelos lábios que ela mordeu e acompanhado de um manejo de cabeça me mostraram que ela sentia a mesma dor que eu... Saudade... E eu não consegui dizer outra coisa que não fosse “Ai, cara...”. Alguns instantes depois, ela foi para o quarto pra voltar algumas horas depois refeita, como a Anne dos primeiros dias. Reservada, mas cumprimentando sempre. E, pelo que demonstrou outro dia desses, torcendo por mim e pelo meu amor.

Susy Almeida
Colônia, 21.10.08

sábado, 2 de maio de 2009

Crônicas do Velho Mundo novo - Outono

À minha mãe

A vida tem, sim, suas múltiplas facetas e fases. É irônica e justa; derruba e ergue; mata e dá vida. O momento da ironia, de derrubar ou matar é na maioria das vezes mal compreendido. É visto como qualquer outra coisa, menos como algo até necessário pra que se caminhe, pra que a vida continue sendo... vida.

Assim é a ironia também de estar longe de quem tanto se ama e de quem é até essencial. Não, não estou falando do Thomas – embora todos os dias eu tenha que lidar, não com facilidade, da imensa saudade que tenho dele –, mas da minha mãezinha, que me faz uma falta enorme e cuja lembrança me dá forcas e me faz lembrar das vezes em que ela me disse "Vá, você consegue!" quando eu ainda era bem pequena e tinha medo do que representa um "desafio" pra uma criança, como resolver sozinha um pequeno problema na escola ou voltar de lá sozinha.

É impossível não viver aqui e não "vê-la" em tudo isso, ainda que nunca tenhamos vivido nada aqui, mas é que todos os dias eu lembro das coisas ensinadas e ditas e vejo o quanto isso me foi e é substancial. E ainda escuto "Vá, você consegue!", quando preciso resolver algum problema.

E porque a lembrança que tenho é constante, não pude deixar de me lembrar dela e preparar uma surpresa quando passei por um parque semana passada. Ela sempre falou com uma expressão muito bonita no rosto que o outono "deve ser a coisa mais linda, aquelas folhas todas caindo...!". Sim, mãezinha, o outono é lindo...! Faz a gente pensar: "A vida tem que circular pra continuar sendo vida!". As folhas da primavera do ano que vem serão outras tao ou mais bonitas quanto as que estão indo agora. A vida será melhor amanha, quando o tempo de ironia, distância ou qualquer outra dor que seja nos mostrar seus frutos... Pensando na senhora, mãe, eu bati várias fotos das coisas que vi neste parque. Todas pra senhora! Um presente... Selecionei as melhores e criei um álbum no orkut (http://www.orkut.com/Main#AlbumList.aspx?rl=mo&uid=6514628893080680824).

O ideal seria você ver isso de perto, mas enquanto isso não acontece vou vivendo por nós, como fez tantas vezes por mim e pelas meninas...

Te amo.

Susy Almeida
Colônia, 13.10.08

Crônicas do Velho Mundo novo - Paola

Um dos momentos mais curiosos da vida é o instante imediatamente anterior ao de grandes coisas, grandes eventos que ficaram no nosso espaço, na nossa alma, naquilo que chamamos de nossa vida. Todos têm seus grandes momentos, nem que tenham sido brevíssimos, mas todos têm seus grandes momentos, e o instante imediatamente anterior aos maravilhosos instantes da minha vida me interessam de sobremaneira. Quero sempre me lembrar de como eu via alguém antes que este alguém se tornasse importante pra mim, do que eu sentia pra querê-lo perto, do que eu fiz para trazê-lo para perto ou de como caminhei para ir para perto. Quero entender como e por qual razão comecei a estudar tal coisa, como e por qual razão ouvi uma dada música que se tornou tao significativa. O interessante é que nem sempre a gente consegue resgatar este instante anterior, exatamente porque no momento eles são como qualquer outro, o que se constrói a partir dali é que parece determinar a importância desta fração de minutos ou horas.

E assim foi neste fim de semana. A Paola, amiga há exatos 12 anos, veio me visitar aqui em Colônia e naturalmente pensei pouco antes de ela chegar: „Quando eu olhava pra ela na sexta série nem imaginava que ela fosse participar de um momento tao meu como esse.“. Naquela época sequer me passava pela cabeça que em 12 anos eu estaria aqui e muito menos me passava pela cabeça que ela, com quem só trocava „ois“, pudesse estar aqui. A gente viveu uma série de coisas até 2001, ano em que ela veio para os lados de cá. Fiquei pensando, então, nas coisas que a trouxeram pra cá, nas que me trouxeram pra cá e, sobretudo, nas que nos fizeram manter o contato e a amizade. Apesar do convívio constante no tempo do colégio, estes três dias em Colônia foram a primeira coisa que a gente fez em dupla, porque o dia em que eu dormi na casa dela ela esqueceu, então não conta!

Uma das coisas mais interessantes ao encontrar alguém depois de tanto tempo são as diferenças que saltam. Ou que não saltam! Segundo ela, tirando o cabelo curto e a segurança (!), estou do mesmo jeito. Ela, pra mim, tirando a linguagem corporal de européia que incorporou, continua do mesmo jeito. Por outro lado, como a gente conversou coisas que nunca conversou com 12 ou 15 anos! E como a gente riu das besteiras de 12 e 15 anos! Diferenças que saltaram e que me fizeram muito bem.

Hoje ela foi embora e estou aqui vivenciando aquela nostalgia do primeiro dia depois de uma despedida, mas amanha passa! Como não poderia ser diferente e pra deixar com cara de filme, a gente combinou um encontro daqui a exatos 12 anos. Mesmo sem saber o que de fato vai acontecer daqui pra lá, gostaria muito de poder ver as diferenças que saltarão ou não saltarão depois dos próximos 12 anos.

Susy Almeida
Colônia, 05.10.08